Pensamento Crítico
Do DNA à Sociedade: construindo a tolerância pelo pensamento crítico
O amor só será completo se for ir. A ordem precisa da troca, do respeito. E o progresso - metáfora da gravidade - é o que une e cria

Um pequeno fractal de gelo. A pata de uma iguana. Os cabelos vermelhos dela. Um rosto em meio à multidão. Um filamento de DNA. Milhões de combinações possíveis. Uma pessoa. Única. Mesmo entre irmãos gêmeos, digitais diferentes. Somos múltiplos. Cada um com suas próprias características. Jamais iguais. Nem na genética. Esse é o Gênesis.
Ainda assim, em um mundo tão único, muitos insistem em enxergar o outro como ameaça. Diferenças de opinião, de aparência, de crença ou de origem tornam-se motivo de confronto - como se a pluralidade fosse um erro, e não uma expressão legítima da natureza humana. A intolerância nasce justamente da recusa em aceitar o que escapa ao próprio reflexo. Falta escuta. Falta dúvida. Falta o exercício do pensamento crítico - esse músculo interno que nos ajuda a compreender, antes de julgar, e a questionar, antes de condenar.
Gênesis, seja lido como fé ou metáfora, é, antes de tudo, uma narrativa da complexidade. Esquecer que viemos do diverso é esquecer de onde viemos.
Talvez por isso o pensamento crítico seja tão essencial: ele nos reconecta à origem - não como retorno ao ado, mas como consciência da vastidão (ou da natureza) que nos formou.
Reconhecer a diversidade como ponto de partida é também itir que a convivência humana exige esforço contínuo de compreensão e respeito. No entanto, o que se vê com frequência é a negação dessa origem comum, substituída por discursos de exclusão e superioridade. A intolerância se manifesta, muitas vezes, como defesa diante da diferença - como se o outro representasse uma ameaça à própria identidade. Mas o que está em jogo não é apenas a convivência pacífica: é a capacidade de sustentar uma sociedade plural sem recorrer à violência simbólica ou física. A tolerância, nesse contexto, não pode ser entendida como mera aceitação iva, e sim como prática ativa, fundada na escuta, na empatia e na consciência crítica das próprias crenças.
O sociólogo francês Pierre Bourdieu propõe um campo cultural no qual todas as referências culturais, todas as pessoas e instituições se encontram. Desses choques, surge a diversidade - uma dinâmica complexa, que convida ao pensamento crítico e à tolerância.
Para entendermos a tolerância e o pensamento crítico, ouvimos quatro professores - quatro pessoas, de áreas diferentes - que convivem diariamente com a necessidade de catalisar dezenas de opiniões diferentes e ajudar outras a conhecerem uma nova forma de viver. Não apenas uma profissão, mas todo um código ético.
No princípio, havia a singularidade. Dela surgiu a vida.
Sobre o amor
A máxima positivista “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”, que inspirou o conhecido lema “Ordem e Progresso” da bandeira brasileira, é também a frase indicada por César Caracante, coordenador de Ensino da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra de Sorocaba (Adesg). Ele afirma que o lema atribuído a Auguste Comte pode funcionar como uma espécie de manual para a tolerância.
O amor como eixo central das relações. A vontade de ver o outro bem. O bem-estar social como um dos pilares do cristianismo: amar ao próximo como a si mesmo. A ordem, como as regras mínimas que devem estruturar a sociedade, garantindo condições dignas de vida para todas as pessoas. Por fim, o progresso - pessoal e coletivo - como objetivo.
César afirma ainda que, em todos os seus anos como professor na Adesg, nunca presenciou uma briga, pois a associação preza pela paz, mantendo vivos os elementos comuns a todos: uma história e uma base cultural que acolham todos os alunos.
O amor só será completo se for ir. A ordem precisa da troca, do respeito. E o progresso - metáfora da gravidade - é o que une e cria. Memória. História. Cultura. Átomos.
Sobre o afeto
“Me procurei a vida inteira e nunca me achei pelo que fui salvo.” A conhecida frase de Manoel de Barros foi a escolhida pela professora do curso de Design da Universidade de Sorocaba (Uniso), Míriam Cristina Carlos, para resumir o que ela aponta como a forma de desenvolver pensamento crítico: manter o olhar de criança, sempre ter na manga um bom “por quê?”. Estar aberto a aprender e a criticar, tecer questionamentos.
Ela entende que o afeto é a ferramenta universal contra a intolerância. Conta, ainda, que em sua experiência em sala de aula tenta oferecer ferramentas para que seus alunos consigam conversar e aprender uns com os outros - acolhimento, estímulo aos afetos, geração de um ambiente seguro. Ensinar a perguntar: este parece ser o caminho.
Míriam vai contra um ensinamento popular: gosto se discute, sim! Abrir-se a novas experiências, novas estéticas, é necessário. Um gosto, ou uma opinião, não devem ser postos em um baú e enterrados, mas discutidos, postos à prova, melhorados, lapidados.
Traduzir. O outro e a si mesmo. A memória dos encontros. Da comunicação.
Sobre a necessidade de adaptação
O remédio contra a intolerância é o repertório: o o à literatura e à capacidade de entender figuras de linguagem diversas.
Quanto mais referências uma pessoa a - livros, metáforas, visões de mundo -, mais capaz ele se torna de enxergar o outro sem medo. O vocabulário é também um espaço de convivência. Essas referências podem vir pela arte, mas também pelo contato com o diferente.
Um dos grandes desafios é desconectar: desligar as telas para conversar pessoalmente, falar, escrever, desenhar.
Viver em sociedade exige observação. Exige que a pessoa olhe para o outro e entenda as necessidades deste. É uma arte que deve servir a alguém - quase nunca ao arquiteto. Um bom ambiente não é o que está perfeitamente alinhado a uma teoria, mas o que oferece conforto e aconchego a quem irá existir naquele lugar.
Traduzir o outro é, muitas vezes, reaprender a si. Porque o que nos molda não é apenas o que sentimos, mas o que herdamos, repetimos, questionamos.
A sobrevivência exige adaptação. A mudança virou linguagem.
Sobre a sociedade
Como nos tornamos aquilo que somos? Todos somos moldados pelo ambiente. Em uma análise essencial, moldados pelos valores familiares. Depois, pelos sociais. Mas ter nascido neste meio não me determina. É possível analisar e escolher se os valores iniciais são os ideais.
O psicólogo André Luiz Sueiro, professor de Psicologia e de Filosofia na Uniso, entende que o pensamento crítico a por duas perguntas: “Como eu penso?” e “Por que eu penso?”. É possível mudar até a cultura mais enraizada. Ele entende que a tolerância pode ser traduzida como a capacidade de lidar com a diferença - e isso vem com o amadurecimento.
Da linguagem, surgiu o coletivo. A necessidade de proteger o outro. A certeza de que uma cidade, uma sala de aula, um espaço de convivência exige a presença de grupos culturais diferentes - que precisam conviver com o máximo de harmonia possível.
Diversidade é riqueza. Henrique Cavalcanti de Albuquerque, professor de História da Universidade Anhembi Morumbi, evoca o pai e relembra uma frase: “Se todo mundo quiser tocar violino, a orquestra vai ser um desastre!”
Precisamos da diversidade. Do diferente. Do outro som. Do outro acorde.
E para o futuro? Otimismo!
Henrique diz que, com base em sua prática docente, os alunos percebem, cada vez mais, os perigos dos algoritmos das redes sociais. E chegam à sala de aula dispostos a furar bolhas e conversar uns com os outros de forma a conhecer o máximo de ideias possível e, a partir daí, construir suas próprias conclusões.
Ele afirma que a função do professor é apresentar opções, pontos de vista, ensinar pela comparação, e deixar o aluno livre para pensar.
Sobre a vida
Após ear por diversos campos e ideias, podemos perceber que, antes de qualquer outra coisa, somos múltiplos. Cada ser carrega um DNA único em cada uma de suas células. Mas mais do que isso: carregamos um contexto cultural único, referências, experiências, dores e amores que são só nossos.
Viver em sociedade é entender que o outro está ando por seus próprios desafios. É reconhecer que cada um está fazendo o melhor que pode com as ferramentas a que teve o.
Precisamos estar prontos para olhar o mundo com olhos de criança. Questionar, nos colocar, entender que mesmo nossas maiores certezas podem mudar, num eterno ato de autolapidação.
Um rosto em meio à multidão: a artista Mariana Maia, de 32 anos, afirma que o segredo é ouvir. Tomar o cuidado de não tentar falar em meio a muitas vozes, para que a resposta à intolerância não seja mais intolerância.
Responder à diferença com escuta é um ato de amor e tolerância, pois a vida é uma história de muitas vozes.
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