Trânsito
O que nossa conduta no trânsito revela
Ausência de empatia entre condutores e a banalização das normas transformam as vias em um espaço de disputa perigosa; muitas mortes e acidentes poderiam ser evitados

Em meio a estatísticas alarmantes de acidentes e mortes nas vias urbanas e em rodovias, o debate sobre o comportamento de motoristas, pedestres e ciclistas volta a ganhar força. Campanhas, sinalizações e ações de fiscalização têm sido recorrentes, mas, ainda assim, muitos ignoram regras básicas de convivência no trânsito, como dar seta, respeitar limites de velocidade ou atravessar na faixa.
A imprudência, a desatenção e a pressa estão entre os principais fatores por trás dos acidentes nas cidades, segundo especialistas no assunto e autoridades. A ausência de empatia entre condutores e a banalização das normas transformam as vias em um espaço de disputa perigosa, segundo relatos de quem vivencia o trânsito diariamente. Há quem defenda que, além da punição, é necessário investir de forma contínua em educação e campanhas de conscientização que alcancem desde as escolas até os motoristas mais experientes.
Educação como princípio de cidadania
A educação no trânsito é um desafio que vai além da sinalização e do cumprimento de regras: trata-se de um projeto coletivo de convivência e cidadania. O advogado e professor Marco Aurélio Galduróz Filho, mestre em Cultura e Segurança Jurídica pela Universidad de Girona (Espanha), ressalta que as leis de trânsito, assim como outras normas jurídicas, existem para garantir a pacificação social - ou seja, organizar o convívio entre as pessoas por meio de regras que, quando descumpridas, podem e devem ser punidas pelo Estado.
Ele destaca que a legislação é consequência das demandas sociais e que seu impacto está diretamente ligado à estrutura da sociedade - e não apenas à aplicação da punição. “A lei, ao longo do tempo, consolidou-se como necessária para a pacificação social. Temos normas morais, etiquetas e dogmas religiosos, todos como mecanismos de controle, mas a legislação se destaca por permitir que o Estado aplique sanções executáveis”, explica.
Para Galduróz, a sensação de impunidade ou o hábito de desrespeitar regras não se resolve apenas com leis mais duras, mas com mudanças estruturais que envolvem a desigualdade social e a formação cidadã. Ele aponta que, muitas vezes, as leis demoram a refletir as transformações da sociedade, tornando se defasadas antes mesmo de entrarem em vigor. Por isso, defende que noções básicas de Direito deveriam ser ensinadas desde o ensino fundamental, contribuindo para a formação de cidadãos mais conscientes de seus direitos e deveres.
“Na minha opinião, a sensação de desrespeito - do tipo ‘ah, ele desrespeita, eu também vou desrespeitar’ - não é culpa da legislação em si. Trata-se de um ideal social, marcado por fatores históricos e por desigualdades que geram esse comportamento”, opina.
O especialista em trânsito Renato Campestrini aponta que a formação de bons motoristas começa ainda na infância, com o exemplo dos adultos e com uma educação voltada ao uso respeitoso das vias. Ele lembra que o trânsito não se resume aos veículos motorizados, mas envolve também pedestres, ciclistas e até animais. Por isso, defende que esse tipo de ensino deve ser incluído na rotina escolar. “O principal erro de comportamento é achar que o trânsito é um espaço onde se pode fazer o que quiser, por ser cidadão e pagar impostos. Na verdade, a via pública é um espaço compartilhado, e a ação de um repercute diretamente na vida do outro”, analisa.
Campestrini, que também é advogado, alerta que muitos motoristas agem como se estivessem isolados em seus veículos, protegidos por películas escuras, o que cria uma “bolha” e uma falsa sensação de impunidade. “Isso atrapalha mais do que ajuda na segurança viária e na fluidez do trânsito”, afirma. Para ele, campanhas bem elaboradas ainda têm poder de mudar comportamentos, mas precisam ser constantes, atualizadas e impactantes. “Já utilizei campanhas estrangeiras para conscientizar amigos e familiares sobre o uso do cinto de segurança no banco traseiro”, relata.
Em seguida; a vivência
A radiologista Deise Maria Ligabó, de 58 anos, já trabalhou como motorista de van escolar por seis anos em Sorocaba e Itapeva. Ela relata situações recorrentes de desrespeito com profissionais do transporte coletivo de estudantes.
Segundo Deise, motoristas particulares frequentemente ocupavam as vagas destinadas às vans escolares, mesmo sabendo da importância de o rápido e seguro à porta das escolas. Ela defende o respeito mútuo e afirma que, mesmo diante de abusos, sempre manteve a postura para garantir a segurança das crianças. “Precisamos, sim, de mais fiscalização, lombadas, radares, campanhas educativas na TV e nas escolas. Mas os motoristas também precisam se conscientizar da responsabilidade de cada um para um trânsito seguro”, ressalta.
O tenente-coronel Fábio Haro, comandante do 7º Batalhão da Polícia Militar do Interior (BPM/I), reforça que atitudes impulsivas e a ausência de empatia estão por trás de muitos desentendimentos e da falta de educação no trânsito. “Boas práticas evitam acidentes. Muitos problemas surgem por desentendimentos e, na emoção do momento, evoluem para danos ao patrimônio e até lesões”, explica. Ele reconhece que a boa educação no trânsito é difícil de ser implementada, mas defende que as sanções ainda são o mecanismo mais eficaz. “A polícia trabalha com a lógica de proteger os mais vulneráveis, como pedestres e ciclistas”, afirma.
Haro destaca os horários mais críticos do trânsito: início da manhã e final da tarde, quando coincidem as entradas e saídas de escolas e locais de trabalho, respectivamente. Ele também ressalta a importância das campanhas educativas, como a realizada em fevereiro deste ano, com a participação da PM, Polícia Civil, Guarda Civil Municipal, Corpo de Bombeiros, Secretaria de Mobilidade de Sorocaba e voluntários.
“Ações como o projeto Jovens Brasileiros em Ação (JAB), direcionado a estudantes do ensino fundamental e médio, são essenciais”, diz.
No caso de Sorocaba, o comandante avalia que o ano de 2024 foi especialmente crítico, com aumento de acidentes envolvendo motociclistas, comportamento que ele atribui, em parte, ao período pós pandemia. Para ele, a mudança cultural necessária só virá com educação e fiscalização integradas.
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